domingo, 20 de outubro de 2013

Sobre biografias não autorizadas



Bastante curioso a classe artística demonstrar contrariedade às biografias não autorizadas, sobretudo se considerarmos os mais exaltados, como dizem por ai, os latifundiários da MPB.

Chico Buarque, que sofreu a mordaça da ditadura, agora quer amordaçar escritores.

Caetano Veloso, que outrora gritava que é proibido proibir, agora quer proibir as biografias não autorizadas.

Gilberto Gil, preso pelo Ato Institucional nº 05, hoje utiliza os mesmos expedientes outrora utilizados pelos milicos para cercear liberdades alheias.

E vários outros. João Gilberto, Djavan, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e todos os que compõem o tal ‘Procure Saber’.

Mas a classe artística pouco importa nessa discussão.

Os que de fato importam são os historiadores, que – acho – ainda não entraram pra valer nessa discussão.

Afinal, a história recente do Brasil e do mundo está contada em biografias não autorizadas.

Einstein, Leonardo da Vince, Madre Teresa de Caucutá, Adolf Hitler, Madonna, Tarsila do Amaral, Tiradentes, Carlos Marighela e vários outros. Todos eles, ou melhor, suas histórias, contadas em livros não autorizados, fazem parte de registros cujo proprietário é a história da humanidade.

Eis o ponto central: a vida pessoal de figuras públicas é, por definição, de interesse público. Ou melhor, de interesse da própria história.

A biografia é uma obra de informação e, como tal, deve ser admitida ainda que sem consentimento do biografado.

Impedir o registro ou a publicação é censura pura, sem qualquer eufemismo. E como disse Boris Fausto e Ruy Castro no manifesto divulgado na Bienal do Rio de Janeiro, a proibição às biografias não autorizadas “é um monopólio da história, típico de regimes totalitários".

Acredito na liberdade total de publicação. E em caso de abuso, tal como invencionice, distorção da verdade, criação de escândalo ou qualquer outro tipo de factoide, o escritor que assuma o risco da retratação ou indenização respectiva.

Cercear a história, não.

Não bastasse, alguns biografados tratam sua história como um produto que lhes pertence e exigem participação nas receitas que suas biografias possam render.

Dizem que poucas biografias são rentáveis; que a maioria é inviável financeiramente, pois, por um lado, consomem muitos recursos dos biógrafos em termos de tempo, pesquisa, viagens, entrevistas, etc., e, de outra parte, não possuem comércio suficiente para superar o investimento.

E no caso de rentabilidade, penso, em princípio, que ao escritor caberá a totalidade dos frutos, já que ele quem trabalhou na obra. Caso contrário, estaríamos admitindo a extração de mais valia sem a existência de qualquer relação formal de trabalho, como no caso dos transgênicos.

Acredito que a questão não pode ser reduzida tão somente à privacidade do biografado ou tampouco à remuneração do escritor. Diz respeito, sobretudo, ao registro da história.

E no meio dessa disputa mesquinha em torno de vaidades e interesses comerciais, se eleva o exemplo do jornalista Mario Magalhães, escritor da biografia de Carlos Marighela[1], controverso militante esquerdista brasileiro.

Magalhães consumiu dez anos e muitos recursos próprios para escrever o livro, não pediu autorização aos herdeiros do falecido e o publicou sem expectativa de retorno financeiro.

A família do biografado, num ato raro de grandeza, deixou a obra livre para circular e trazer luz sobre importantes fatos da nossa História.

Enquanto isso, a biografia de Roberto Carlos corre solta em forma digital na terra inóspita da internet, atormentando o sono do rei e sem render um centavo ao seu biógrafo.


[1]Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo’.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Sobre manifestações e partidos políticos.



As recentes manifestações, puxadas inicialmente por movimentos sociais (no Estado de São Paulo, pelo Movimento Passe Livre da capital paulista), trouxe consigo inúmeras e interessantíssimas reflexões.

Uma delas diz respeito às críticas direcionadas aos tradicionais partidos de esquerda – alguns, inclusive, com militantes ligados organicamente aos próprios movimentos sociais que orquestraram as manifestações.

A repulsão aos partidos políticos foi nítida – não por aqueles que construíram as manifestações, mas pela massa que aderiu aos protestos – causando mal estar entre as esquerdas.

Para aqueles que possuem orientação marxista, é difícil conceber que o partido possui, necessariamente, o gene de sua própria burocratização, ainda que admitam o fracasso de experiências históricas.

Na União Soviética a história do Partido Bolchevique percorreu, religiosamente, aquilo que Trotsky previu no ensaio ‘Nossas Tarefas Políticas: no processo de tomada do poder’: o partido de vanguarda se distanciou do movimento de massas que pretendia representar, transformando-se em aparelho dirigido por uma burocracia dotada de lógica própria.

A organização do partido substituiu o próprio partido, o comitê central substituiu a organização do partido e o secretário geral substituiu o comitê central, nas palavras do próprio Trotsky.

No Brasil, exemplo clássico encontramos no PT, cuja história fala por si só. Três décadas e um abismo político separaram o partido alavancado pelas greves do ABC do balcão de negócios chamado ‘mensalão’.

Posto isso, outra conclusão o imaginário popular não poderia chegar senão a demonização das agremiações políticas, tal como se observou nas ultimas manifestações tupiniquins.

Então, esse preconceito contra partidos é compreensível, embora não seja justificado – afinal, foram os tradicionais partidos de esquerda, com seus núcleos de juventude, que há décadas prepararam o terreno para as recentes manifestações.

Eles sempre estiveram nas ruas, levantando as mesmas bandeiras ora levantadas, e os que ‘acordaram agora’ querem retirá-los, repita-se, do lugar que sempre estiveram.

Mas, se não são os partidos de vanguarda os que irão centralizar a revolta popular e avançar no debate, quais os próximos passos dos movimentos sociais? Continuar na condição de movimento, com as limitações que este estado possui?

A história também pode sugerir a resposta, já que esta crítica também fora levada a efeito pelos anarquistas na Primeira Internacional, sobretudo por Bakunin, os quais recusavam a sistemática partidária e qualquer outra perspectiva que colocasse no horizonte a centralização do poder.

A partir daí, duas tendências surgiram: uma mais centralizadora, ligada ao marxismo, que desejava um corpo disciplinado sob as ordens de um comitê central, e outra mais libertária, de orientação anarquista, que pretendia uma federação de organizações autônomas.

Desta segunda tendência surgiu movimentos autonomistas, tais como os extremistas italianos Brigadas Vermelhas e os alemães Baader-Meinhof, que se utilizavam das mesmas estratégias atualmente utilizada pelos tais ‘black blocs’ brasileiros, os quais, ao que parece, não possuem centralismo algum, ao contrário dos primeiros.

De qualquer forma, método e programa equivocados, penso. Mas isso é outra discussão.

Fato é que esta discussão sobre os partidos políticos não é nova, mas pelo contrário, remonta a disputa histórica entre marxistas e anarquistas, agora requentada pelos últimos acontecimentos de nossa história recente.

No final das contas, um debate sempre necessário.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Sobre Hugo Chávez e Venezuela



Muito se tem falado no socialismo arquitetado por Chávez na Venezuela, ou melhor, no ‘socialismo bolivariano’, como o próprio tenente-coronel verbera aos borbotões.

Quiçá pelas estatizações que levou a cabo ao longo de sua presidência, nacionalizando importantes multinacionais, ou seja pelas declarações que fez contra Bush, o baluarte do grande capital,  ou até mesmo pela popularidade que detém em seu país, Chávez possui muita simpatia por parte da esquerda, mormente a tupiniquim, que ousa acreditar no tal do ‘socialismo do século XXI’.

Que fique claro que não estou aqui a criticar o que chamam de ‘chavismo’, que, de fato, conquistou importantes vitórias em relação à política subserviente de Pérez.

O que quero dizer é que devemos ter cautela com o tão festejado socialismo venezuelano.

A popularidade de Chávez e sua posição anti-imperialista, embora sugiram governo progressista, não são elementos necessariamente caracterizadores de uma economia planificada, embora sejam boas alvíssaras, principalmente a segunda hipótese.

Com relação às nacionalizações promovidas na Venezuela, pode se dizer a mesma coisa. E é neste ponto que quero me deter, já que é o mais utilizado pelos defensores do tal ‘socialismo do século XXI’.

A história nos demonstra que estatizações não significam governos socialistas. Se assim fosse, a ditadura militar brasileira possuiria elementos socialistas na economia, já que estatizou multinacionais ligadas à infraestrutura econômica.

Em linhas gerais, uma economia socialista pressupõe a expropriação dos meios de produção da classe dominante, sua planificação e o monopólio estatal do comércio exterior, de modo a gerar ruptura do domínio das grandes empresas privadas sobre a economia e seu funcionamento com base no mercado, o que não depende exclusivamente da nacionalização de algumas empresas, como aconteceu na Venezuela.

Tal como está, o governo de Chávez mais se parece repeteco do que vimos na Argentina de Perón ou no Peru de Alvarado: nacionalismo pequeno-burguês, porque estatiza multinacionais, dando força ao sentimento patriótico, mas mantém a lógica do mercado, mantendo a dominação de classe, sobretudo no plano econômico.

Embora sejam as nacionalizações importantes mudanças na infra estrutura econômica, elas não levam inexoravelmente a uma ruptura com o sistema produtor de mercadorias.

Aliás, Marx e Engels, no Manifesto Comunista, já afirmavam a posição do proletariado face à questão nacional, onde a burguesia detinha a hegemonia do processo:

"Os trabalhadores não têm pátria. Não podemos tomar deles aquilo que não possuem. Como o proletariado pretende adquirir a supremacia política, tornar-se a classe dirigente da nação, tornar-se a própria nação, é nesse sentido, ele mesmo nacional, embora não no sentido burguês da palavra. As diferenciações e os antagonismos entre os povos desaparecem dia a dia, devido ao desenvolvimento da burguesia, à liberdade de comércio, ao mercado mundial, à uniformidade na forma de produção e às condições de existência correspondente.”

E mais, no caso específico da Venezuela ainda há a suspeita de que as nacionalizações das empresas CANTV (telefonia) e EDC (eletricidade) não foram ‘expropriações’, como muita gente pensa, mas sim compra de ações que ocorreram dentro dos limites da legalidade do capital. E tanto é assim que não assustaram um dos principais organismos da economia globalizada, o Banco Mundial, cujo presidente, à época, afirmou que as nacionalizações da Venezuela ‘foram bem realizadas’ e que não seriam ‘motivos para desconfiança’[1].

Mas sem dúvida a experiência venezuelana é interessante, sobretudo porque o governo de Chávez foi o primeiro na América Latina a fazer frente ao governo norte-americano, desde os anos 90, e, ao que parece, ainda encontra ressonância popular, embora analistas digam que a eleição presidencial de 2012 esteja bastante paritária.

Vejamos os próximos passos do chavismo. Só espero que Bolívar não se revire do túmulo.


[1] No caso da CANTV, diga-se que ela foi estatal até 1991, quando foi privatizada pelo então presidente Pérez. Fora comprada pela norte americana Verizón Comunications, que após crise econômica aposentou grande parte dos trabalhadores, que passaram para a inatividade com benefícios menores do que o salário mínimo local, algo proibido pelas leis vigentes no país. Após demandas judiciais, o governo da Venezuela assumiu o prejuízo social. Visando reestruturação, as ações da empresa foram vendidas nas bolsas de valores norte-americanas e arrematadas pela própria Venezuela, na ocasião sob a presidência de Chávez.

Situação parecida ocorreu com a EDC.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Sobre corrupção e neoliberalismo


Muito se fala no julgamento do ‘mensalão’ pelo Supremo Tribunal Federal. Carlinhos Cachoeira (e sua linda senhora) atualmente também são temas recorrentes nos noticiários. Cavendish e asseclas idem. E todos estão a depositar nos órgãos do Poder Judiciário a responsabilidade de punir os transviados, ainda que sob a forma de justiçamento, à revelia dos princípios mais comezinhos do Direito, em uma justa expectativa cívica.

"Visceras expostas, o espetáculo midiático se encarrega de criar a sensação de que, 'desda vez', a justiça será feita, e que a democracia sairá fortalecida". - José Arbex Jr, jornalista.

Mas existe algo de muito curioso nesta história.

No Brasil (e acho que em grande parte do mundo também), a corrupção sempre foi uma questão relacionada a sérios desvios individuais de conduta, cuja reprimenda sempre foi buscada no âmbito do Direito, especialmente do Direito Penal.

Um discurso tão sedutor quanto neoliberal: punição na forma da lei. Uma solução intrassistêmica e reduzida ao âmbito moralista individual – para preservar o sistema e, especialmente sob a ótica neoliberal, transferir o controle à iniciativa privada, já que a corrupção seria algo intrínseco ao serviço público.

Assim, o discurso dominante é no sentido de que a corrupção seria fruto do desvio moral de condutas individuais, alimentado pela impunidade. O corrupto sempre foi demonizado em sua individualidade moral (Cachoeira e Cavendish que o digam) e, obviamente, sua punição seria a principal solução. Uma explicação fácil e bastante ressonante no senso comum.

Aliás, o ideal, para preservar o sistema político e econômico, segundo o discurso individualizador, seria punir ou educar os desviados, como nos ensinam os filmes 'Laranja Mecânica' de Kubrick e 'O Estranho no Ninho', de Fromam.

Mas é uma solução que, sem sombra de dúvidas, não resolve de fato o problema da corrupção, e sequer arranha os fundamentos do esquema corruptor, eis que mantém intocado o sistema político e econômico, verdadeiro responsável pelos desvios morais de conduta.

A corrupção é um fenômeno essencialmente político, e não moral, ao contrário do que quer fazer crer o discurso (neoliberal) dominante, que não raras vezes cobre, oculta ou cria a realidade.

Efetivamente, a corrupção é um fenômeno que advém de estruturas de poder que se formam na relação entre Estado e sociedade e, portanto, somente encontra solução em uma crítica ao próprio sistema político/econômico – algo que a ideologia dominante obviamente não faz.

Como bem disse o professor José Henrique Rodrigues Torres: ‘parece-me induvidoso que, nessa cruzada contra a corrupção, a punição e a educação partem da mesma ideia intrassistêmica preservacionista: o problema está no indivíduo, que deve ser punido ou reeducado, pois o sistema é bom e, por isso, deve ser preservado e controlado pela iniciativa privada, essencialmente ética e comprometida com a felicidade da nação e o bem-estar de todos os cidadãos[1].

Não é punindo os corruptos que iremos diminuir ou acabar com a corrupção. Ainda mais em um país onde a corrupção é endêmica e histórica, originária além de tudo no regime patrimonial que deu nascimento a esta nação: troca de favores materiais por favores políticos.

Neste sentido, diz o sociólogo Souza Martins que ‘a grande corrupção não seria possível se não fosse expressão de uma cultura da corrupção miúda e cotidiana[2]’.

E ainda José Arbex Jr.: 'Cavendish, Cachoeira e assemelhados são apenas faces de uma velha, velhíssima prática historicamente consagrada no Brasil, mediante a qual o dinheiro privado compra favores dos encarregados de gerenciar a coisa pública. Ou, em outros termos, são agentes da privatização do Estado por meio da corrupção[3]'.

E não deve ser a toa que muitos notoriamente envolvidos no caso do mensalão proclamam aos borbotões que tiveram a inocência reconhecida pelo povo no ato da reeleição que conseguiram.

Bons tempos para refletirmos sobre as verdadeiras razões da corrupção tupiniquim – mas sem ilusão.


[1] Revista Caros Amigos, edição nº 175. 'Combater a corrupção é combater o capitalismo', fls. 20.
[2] Martins, José de Souza. P poder do atraso - ensaios de sociologia da história lenta. Hucitec, 1994.
[3] Revista Caros Amigos, edição 182. 500 anos de falcatruas', fls. 07.